Tradicionalismo: Dessa vez os protestantes ficaram na Igreja
O século XVI assistiu à defecção dos reformadores, que, sob o pretexto de purificar a fé, romperam com a única barca prometida por Cristo. Hoje, algo semelhante acontece, mas de modo mais sutil e, portanto, mais perigoso: não mais por meio de católicos que saem, mas por católicos que, permanecendo, já não crêem onde permanecem. O tradicionalismo contemporâneo, com sua retórica de fidelidade, é o espelho invertido da Reforma: não afirma abertamente o cisma, mas vive e raciocina sob sua lógica. Dessa vez, os protestantes ficaram na Igreja.
Na raiz da Reforma estava o colapso da confiança na autoridade da Igreja. Lutero, Zwinglio, Calvino e outros diziam-se traídos por Roma: para eles, não havia problema algum em alegar que a Igreja havia pervertido o Evangelho, que os sacramentos haviam se tornado instrumentos de dominação, que a liturgia era um desvio da simplicidade apostólica. A Igreja falhou, e agora cabia ao fiel reconstruí-la. O tradicionalismo de hoje segue o mesmo roteiro. Também ele afirma que a Igreja se desviou. Que a Missa promulgada por Paulo VI é herética. Que o Catecismo aprovado por João Paulo II é ambíguo. Que os santos canonizados recentemente são, no mínimo, questionáveis. Os protestantes do século XVI rejeitaram Trento; os tradicionalistas rejeitam o Vaticano II – ambos, porque não confirmaram suas certezas.
O Concílio Vaticano II, constantemente acusado de ser o marco da decadência moderna é, na verdade, apenas mais um capítulo de um processo constante: a Igreja, como em Trento, reage aos sinais dos tempos. Não para adaptar-se ao mundo, mas para enfrentá-lo com a linguagem compreensível ao homem da época. No século XVI, Trento precisou responder ao livre exame da Bíblia, ao colapso da Cristandade, à ascensão da via moderna de Ockham, ao nominalismo, ao racionalismo e à fragmentação das nações. Organizou a catequese, reforçou a autoridade episcopal, fixou os ritos, definiu os sacramentos. Foi um ato de modernização — não contra a Tradição, mas em nome dela. Assim também o Vaticano II não rompeu com o que veio antes, mas reafirmou, em linguagem nova, o que sempre foi crido.
É curioso, portanto, que os tradicionalistas ergam Trento como estandarte absoluto de um passado idealizado, mas recusem à Igreja de hoje o mesmo direito que concedem àquela: o direito de interpretar os tempos e ser a Senhora da História.
Como bem apontou Jaime Balmes, no clássico Protestantismo comparado com o Catolicismo, dois são os pilares do espírito revolucionário protestante: o ódio à autoridade e o espírito de seita. Ambos estão presentes no tradicionalismo. O ódio à autoridade se disfarça de “zelo pela tradição”, mas é sempre o mesmo veneno: uma recusa orgulhosa a submeter-se à Igreja viva. Já o espírito de seita se revela na formação de microgrupos que se autodeclaram “guardiões da fé”. Essa lógica de pureza isolada é a antítese do catolicismo ao longo da história.
A comparação com os reformadores protestantes é inevitável. Ambos alegam que a Igreja traiu sua missão. Ambos criam um critério externo, seja a Escritura interpretada a bel-prazer, seja uma “tradição” fabricada sob medida, para julgar e rejeitar a autoridade da Igreja. Ambos terminam por, primeiro, acusar a Igreja de ter traído a fé; depois, erigir um corpo doutrinário alternativo; por fim, criar uma comunidade paralela.
E por isso mesmo, a resposta eclesial ao tradicionalismo deve ser clara, firme e sem hesitações. A unidade visível da Igreja — unum corpus et unus Spiritus — é uma marca constitutiva da ortodoxia. Quando se fere a unidade, fere-se o Corpo místico de Cristo. E, nesse caso, a ferida é interna. O progressista, com todas as suas invenções litúrgicas e excentricidades teológicas, ainda se vê como filho da casa. O tradicionalista, embora permaneça no recinto, já se comporta como alguém que fundou uma nova família e uma nova fé.
Costumo dizer que o progressista é aquele que enfeita o altar com flores demais, e o tradicionalista, para resolver o problema, prefere atear fogo à Igreja inteira.
A autoridade da Igreja não pode ser invocada seletivamente. Ou se crê no Magistério em continuidade — mesmo com todas as suas imperfeições humanas — ou se cai na lógica autodestrutiva de que só existe Igreja onde há acordo com minha opinião. Foi isso que deu origem a Genebra, a Wittenberg, e é isso que agora começa a dar origem a centros, institutos e fraternidades.
O tradicionalismo não é o guardião da Tradição. É a sua distorção. Não é o remédio contra a crise, mas a sua metástase. Nega a realidade visível da Igreja, desacredita sua autoridade, e planta na alma dos fiéis a semente da discórdia: “será que ainda é Igreja?” — a pergunta que deu origem a todas as seitas, a todas as heresias, e que agora volta a ser feita por quem diz defender a ortodoxia.
Não imitemos os protestantes do passado, que saíram de casa, nem os do presente, que permaneceram apenas para negar a autoridade da sua mãe que dizem amar. A fé na Igreja não é uma conspiração de suspeitas, mas um ato de abandono; e a fidelidade, quando é verdadeiramente católica, jamais se ergue contra a Igreja, mas com ela, até o fim dos tempos.